ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO NO COTIDIANO DA
SALA DE AULA
Cláudio Alves de Melo
RESUMO
A escolha do tema se deu por pensarmos que as
crianças da turma investigada estão numa faixa etária que utilizam a linguagem
oral como principal meio de comunicação, bem como estão em processo de descoberta
e compreensão das funções sociais e dos modos de funcionamento da linguagem escrita.
Estamos em nosso ensaio considerando as orientações cotidianas de alfabetização
ou letramento desenvolvidas pelos sujeitos nos seus grupos sociais ou na
relação com outros grupos sociais. Visto que, a vida cotidiana
social é atravessada pelas formas como a linguagem escrita e falada, de modo
implícito ou explícito, com complexidade ou não afetam os sujeitos.
Palavras-chave:
Alfabetização, letramento, enunciação.
1 - ABERTURA
O presente ensaio apresenta resultados de uma
Pesquisa de Diagnóstico Rápido (PDR) de caráter qualitativo, realizada numa Escola Municipal da cidade de Niterói. Neste
sentido, a observação que realizamos assume papel extremamente relevante. Nossa
observação foi organizada em dois grupos de registro: 1) atividades em geral;
2) cadernos. No entanto, nesse ensaio vamos enfatizar em nossas análises o
primeiro grupo de registro – atividades em geral. Nossa PDR foi desenvolvida em
uma turma do 2º ano do ensino fundamental I com 28 alunos.
O objetivo geral da nossa PDR foi
investigar diferentes modos de constituição de sujeitos alfabetizados ou letrados.
A escola observada é um
espaço escolar que atende a comunidade universitária da Universidade Federal
Fluminense por meio de convênio com a Fundação de Educação do Município de
Niterói/RJ, oferecendo um serviço pedagógico a crianças que cursam o ensino
fundamental I. Portanto, se caracteriza como campo de investigação e prática
que possibilita a formação profissional e acadêmica dos estudantes de graduação
interessados na modalidade da Educação Infantil.
A escolha do tema se deu por pensarmos
que as crianças desta turma estão numa faixa etária que utilizam a linguagem
oral como principal meio de comunicação, bem como estarem em processo de descoberta
e compreensão das funções sociais e dos modos de funcionamento da linguagem escrita,
por serem moradoras de zonas urbanas periféricas, e também por frequentarem um
espaço educativo experimental.
Para a apresentação do presente ensaio,
separamos e analisamos alguns dados dos registros de observações do trabalho
pedagógico realizado na turma em atividades variadas. Nestas atividades damos
destaque de indícios e marcas do atravessamento da linguagem escrita e falada nas
interações discursivas observadas entre os pares.
2
– DISCUSSÕES TEÓRICAS
Questões relativas à alfabetização ainda
são profundamente discutidas atualmente, e em meio a essas discussões, nos
deparamos com um novo termo: letramento. Alguns educadores afirmam que tal termo,
apesar de novo se direciona a práticas antigas de ensino das letras. No
entanto, outros profissionais da área afirmam que letramento é uma nova
perspectiva social para contextualizar o processo de alfabetização escolar. Diante
disso, perguntamos: Afinal de contas por que estamos falando de alfabetização e
letramento? Letramento e alfabetização é a mesma coisa?
Estamos falando em letramento pelo
motivo de estarmos nos deparando com o termo todas as vezes que discutimos
sobre leitura e escrita, mas alguns pesquisadores e educadores vêm se mostrando
contrários ao uso do letramento. Vivemos em uma sociedade letrada, sua
organização se dá fundamentalmente por meio de práticas escritas, no entanto, nela
ainda encontramos sujeitos, pasmem não alfabetizados, porém nela sobrevivem. Ou
seja, mesmo sem saber ler e escrever essas pessoas se saem muito bem no
cotidiano de suas vidas seja trabalhando, passeando, usando transportes
públicos, realizando compras e ainda conseguem mercadorias das mais variadas
marcas e preços, e o que é impressionante, estimulam seus filhos a estudarem
formalmente. Nesse sentido:
O
nome é o que menos importa, quando historicamente se confrontam desde a famosa
querela dos métodos às lutas discursivas mais recentes relativas à
alfabetização e letramento; desde as propaladas dificuldades de aprendizagem às
aplicações teóricas que se anunciam como salvadoras; desde a implementação de
políticas públicas de alfabetização à adoção de novas tecnologias, que
frequentemente terminam em fiasco, a despeito de seu alto custo para os cofres
públicos (ZACCUR, 2015, p. 161).
Diante da sobrevivência no mundo letrado
acima descrita o termo letramento pode definir os processos de ensino e
aprendizagem da escrita e da leitura, as formas de uso e funções que a
linguagem possui nos diversos e múltiplos espaços sociais existentes na
sociedade. Diante disso, o termo letramento mostra-se relevante para os estudos
e pesquisas relacionados ao processo de aquisição da leitura e escrita. Já o
termo alfabetização está mais relacionado a uma “visão” deste processo de
ensino/aprendizagem, o qual é visto como um processo que realiza a codificação/decodificação
de sons em letras e vice-versa de forma mecânica. Portanto, presumimos que
alfabetização e letramento, definem processos vinculados entre si, mas são
conceitos diferentes.
Nossa PDR busca investigar aspectos dos
trajetos percorridos pelas crianças para alcançarem a alfabetização ou
letramento, como também os conhecimentos adquiridos durante o percurso desses
processos. Além disso, busca provocar uma reflexão sobre novas metodologias de
trabalho que promovam a formação de sujeitos alfabetizados ou letrados, porém
críticos. Nosso interesse, dessa nossa breve investigação se concentra no
aprofundamento da compreensão de processos e fatores envolvidos na construção
da condição de pessoa alfabetizada ou letrada no espaço educativo, investigando
aspectos de como os modos de ser alfabetizado ou letrado se constituem.
Pensamos que a “Teoria da Enunciação” de
Bakhtin (1988) pode explicar onde queremos chegar com a nossa PDR. Tal teoria
enfatiza a produção de linguagem na perspectiva da enunciação, a qual se refere
à atividade social e interacional por meio da qual a língua é colocada em
funcionamento, ou seja, destacando a natureza social da situação de produção de
discursos. Assim os sentidos do sujeito se constroem, dialogam e disputam
espaço, instaurando-se como signos ideológicos, esse é o processo de
constituição de um sujeito livre. A verdadeira substância da língua é constituída
pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou
das enunciações (cf. Bakhtin, 1988: 123).
Presumimos então que, debatendo e
interligando as diretrizes teóricas acima, que, para avançar no estudo sobre
alfabetização ou letramento, precisamos necessariamente pensar na constituição
do sujeito alfabetizado ou letrado, tendo como base principalmente suas
experiências vividas e suas práticas sociais realizadas a partir de sua
realidade.
Estamos em nosso ensaio considerando as
orientações cotidianas de alfabetização ou letramento desenvolvidas pelos sujeitos
nos seus grupos sociais ou na relação com outros grupos sociais. Visto
que, a vida cotidiana social é atravessada pelas formas como a linguagem
escrita e falada, de modo implícito ou explícito, com complexidade ou não.
Assim,
vivendo em sociedades alfabetizadas ou letradas, tanto os sujeitos
escolarizados, quanto os não escolarizados são afetados de alguma forma pelo
processo da alfabetização ou do letramento.
2.1
– Traços do cotidiano da sala de aula
Os dados aqui apresentados para análise
foram retirados dos registros de observação da pesquisa e prática pedagógica
realizada em uma Escola Municipal da cidade de Niterói em uma turma de 2º ano do ensino
fundamental I. As observações foram realizadas em diferentes dias, horários e
envolveram atividades variadas da professora regente e a professora auxiliar
com as crianças.
Levantamos quatro categorias de análise
para a nossa PDR: 1) conhecimento das linguagens; 2) trabalho com os gêneros do
discurso; 3) atitudes; 4) atividades de leitura e de escrita. Para este ensaio
estamos trazendo para análise um pequeno relato extraído de duas dessas
categorias: conhecimento das linguagens e atitudes.
2.2
– Conhecimento das linguagens
Uma “Rodinha de Conversa” sobre as
eleições 2018 foi desenvolvida no decorrer de nossas observações. Essa conversa motivou a
turma a falar de diversos temas transversais as eleições. Em suas falas as
crianças subjetivamente foram dando sentidos diferenciados a esses temas transversais
que iam desde a continuidade de sua formação sobre como o resultado das
eleições iriam influenciar a mesma, os processos de votação, como também temas
pessoais, como familiar desempregado e pobreza, em fim, na rodinha as crianças socializavam
informações. Observamos a riqueza desses momentos ao propiciar às crianças voz
e vez, no sentido de que se expressando sistematizam o conhecimento
conscientemente.
O fragmento abaixo foi retirado dessa
rodinha de socialização. Conforme as categorias explicitadas acima, esse fragmento
está categorizado como relativo ao conhecimento das linguagens. O relato
constitui-se no seguinte: “Minha mãe está desempregada, por isso está morando
com meus avós”.
Destacamos a interatividade realizada na
rodinha de conversa, na qual observamos em silêncio as falas e discursos entre
a professora e as crianças. Por meio de uma abordagem simples o tema “Eleições
2018” foi debatido, atravessado por outros temas transversais tais como pobreza
e desemprego. No sentido bakhtiniano, a expectativa é que as crianças vão se
apropriando das palavras, não homogeneamente, mas de forma heterogenia
ampliando suas possibilidades de usar a linguagem tanto escrita quanto falada.
As diversas formas como é construída a
linguagem neste espaço de interação, como a “Rodinha de Conversa”, promoveu o
contato com múltiplas linguagens sociais que, como consequência, influência no desenvolvimento
da relação da criança com o conhecimento gerando mais conhecimento. As diversas
falas/enunciados encontrados neste momento de debate estimularam e incentivaram
a voz da criança e a escuta do educador e vice versa. Como sugere Pérez (2015):
As
rodas de conversas se constituem em espaço/tempo coletivo de narrativa e de
exercício de escuta. Tal perspectiva metodológica entende a produção de
conhecimento como um tapete tecido a várias mãos que entrelaça movimentos,
surpresas e descobertas: movimento de nos construirmos pesquisadoras junto com
as crianças, surpresa de sermos desafiadas pelas lógicas próprias da infância e
descobertas de que aprendemos com as crianças e suas lógicas (PÉREZ, 2015, P.
183).
Sendo assim, a diversidade de sentido que
se construiu a partir da “Rodinha de Conversa”, mediada pela professora, criou
um momento rico de possibilidades subjetivas para a promoção da interatividade,
em que as crianças construíram as suas falas a partir das e com as palavras das
outras crianças, em um movimento de (re)significação. Para tanto, as práticas
educativas devem procurar substituir “[...] a explicação pela descoberta,
potencializar a capacidade criadora das crianças, sua imaginação, suas
diferentes concepções de mundo e a diversidade de significações presentes em
seu universo simbólico e material” (PÉREZ, 2015, P. 182).
Destacamos a importância de vermos as crianças
como leitoras da realidade, além de leitoras e produtoras de textos, e assim,
presumimos como seja fundamental pensarmos em como na sala de aula deve se
planejar o trabalho pedagógico. As crianças, ao entrarem na escola, em geral,
já chegam conhecendo algumas das funções da escrita e da leitura e fazendo
alguns de seus usos sociais, pelo valor que essas linguagens tem em nossa sociedade.
Isso desfaz a “trama lógico-discursiva que nomeia as crianças das classes
populares como incapazes, insubordinadas, indisciplinadas e/ou portadoras de
dificuldades de aprendizagem” (PÉREZ, 2015, P. 182).
Quando presenciamos uma “Rodinha de Conversa”
com crianças de 7 anos de idade parece-nos uma “bagunça”, mas em determinado
momento, uma das crianças utilizou a palavra “desbagunça” para referir-se a uma
atividade de organização do espaço escolar. Para esta criança a palavra “desbagunça”
possui sentido relevante. Tal fato dá evidencias que no processo social de
construção das expressões linguísticas pelas crianças, elas vão introjetando e
metamorfoseando as palavras ditas pelas outras crianças transformando em palavras
próprias, isso é reflexão, isso é produção de conhecimento. Ou seja,
apropriação e uso da linguagem dinamicamente dando novos sentidos aos
enunciados.
Mais tarde, em outros momentos de suas
vidas escolares essas construções não serão mais permitidas, pois serão
consideradas erradas. Será?
3
– NOTAS DE ENCERRAMENTO
1ª
Nota
- O contato com as linguagens escrita e falada em atividades dinâmicas, como as
rodinhas de conversa, deram as crianças intimidade e interação com a sociedade
alfabetizada e letrada que estão inseridas. Tanto suas escritas quanto a
oralidade vêm revelando a interação com mundo letrado.
2ª
Nota
- A escola deve perceber nas crianças suas capacidades de expressão na produção
e reprodução do conhecimento a partir de suas realidades ou vivências,
principalmente no sentido de valorizar o que estão produzindo.
3ª
Nota
- O presente ensaio traz dados superficiais, porém relevantes que podem provocar
reflexões sobre os processos de alfabetização ou do letramento, em especial
como os modos que esses acontecem.
4
- BIBLIOGRAFIA
BAKHTIN,
Mikhail. Marxismo e filosofia da
linguagem. 3. ed. São Paulo: Hucitec. 1996.
PÉREZ,
Carmen Lúcia Vidal. Alfabetização,
leitura e escrita: um convite à autoria. In: Saberes cotidianos em diálogo.
GARCIA, Regina Leite e ESTEBAN, Maria Teresa e SERPA, Andréa (Orgs.). 1ª Ed. -
Petrópolis, RJ. De Petrus; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2015.
ZACCUR,
Edwiges. Alfabetização: falsas questões
em meio a pistas quentes e frias. In: Saberes cotidianos em diálogo.
GARCIA, Regina Leite e ESTEBAN, Maria Teresa e SERPA, Andréa (Orgs.). 1ª Ed. -
Petrópolis, RJ. De Petrus; Rio de Janeiro: FAPERJ, 2015.
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